quinta-feira, junho 28, 2007

Numa amarelada folha de papel

A nostalgia me tomou ao vasculhar uns papéis com anotações antigas.
Não sei se todos sabem, mas sou euclidiana (estudo Euclides da Cunha) e fui maratonista durante bons quatro anos de minha vida.
Assim, revelo a vocês o texto final escrito para a Semana Euclidiana em agosto de 2001.
Nele uma estudante de 14 anos, que acabara de escolher uma profissão (o jornalismo), fala diretamente a Euclides da Cunha. Lembro-me de ter me orgulhado dele e por isso exponho-o a sua apreciação.

Livro Inclassificável

Ó consagrado Euclides,
foste não apenas um incomparável escritor, conseguiste em tua obra a descrição teatral de uma realidade por ti testemunhada; na qual, com grande sabedoria, uniste a arte e a ciência fazendo deste um livro inclassificável.
Muitos obstáculos transpuzeste para que ao Brasil conservador o sertão e a indiferença se mostrassem.
Devido ao teu pensamento, na atualidade és aclamado como um autor atemporal pois marcaste a História Brasileira, não apenas em sentido literário, mas também em consciência crítica e científica.
Um século se passou e a nós vens com teu "clássico" comprovar a estagnação em que nos encontramos, pois mesmo detendo de grande tecnologia e avançada ciência, nos assemelhamos ao Brasil em que viveste, em que as injustiças se multiplicam em acelerada proporção.
Portanto, espelhemo-nos em ti para que com tua coragem consigamos denunciar nossas Canudos e, conseqüentemente, mudarmos a trágica história a que nos dirigimos a passos largos.

terça-feira, junho 19, 2007

Entrevista: Marisa, serviços gerais (abril/2007)

Todos os dias, os alunos do jornalismo da UFSC vagam pelos corredores sem ao menos prestar-lhe atenção. Alguns, porém, com um leve sorriso no rosto a cumprimentam, “Bom dia!”.
Acabam por pensar nela apenas quando algo está fora do lugar, não há papel no banheiro ou a caneta insiste em não sair da lousa branca. Chamam-na, assim, e ela atende prontamente.
Marisa, jovem e bonita, não aparenta os quatro filhos que tem (o garoto, já adolescente), simpática, ela considera seu trabalho nos serviços gerais, algo tranqüilo, que realiza desde exatos três anos e três meses.
Vinda de Lages, Marisa Aparecida de Souza Capistrana (revelou não saber a origem de tal sobrenome) mudou-se para Florianópolis para ajudar a irmã com o bebê que acabara de ter. Assim, logo se tornou babá de outras crianças e se estabeleceu em definitivo na capital, com seu marido e filhos.
“Mas como veio parar na UFSC?”, indaguei. Marisa calmamente me explicou que fora uma amiga que a indicara para o trabalho e que, desde então, é feliz com o mesmo, pois tem um horário flexível, o que lhe facilita acudir caso qualquer imprevisto aconteça com seus filhos.
Balconista de padaria. Sim, essa é a função que ela mais gostou de exercer. Assim, lidava diretamente com as pessoas, conversava com elas. Marisa disse que só deixaria seu trabalho na UFSC por este emprego.
Seu hobby é ouvir música, inclusive enquanto trabalha. Gosta de dançar também. Contudo, diz preferir ficar em casa com a família nos fins de semana, já que, de segunda a sexta-feira, não possui tanto tempo para dedicar a ela.
Vendo-a tão nova, e com tamanha simpatia, perguntei sobre as relações de trabalho com os outros funcionários da UFSC, amizades, paqueras. Um tanto tímida, Marisa revelou, “sou casada, mas de vez em quando levo algumas cantadas”. Como reage a isso? “Deixo claro que é só amizade.”
É preciso prestar mais atenção, Marisa é uma pessoa fascinante, muitos passam por ela, poucos a notam. Notei-a, e espero, agora, tê-la como uma amiga. Conselho, faça o mesmo; conheça-a.

terça-feira, junho 12, 2007

Ouçamos o apelo da Favela do Siri (maio/2007)

Do chão de terra batida a chuva fez lama. Não há como andar sem, pelo menos, sujar os pés ou até as canelas quando as poças são mais fundas. O asfalto, tão necessário e querido, nunca chegou. O lixo que se acumula por todos os lados traz perigo, doenças e também a renda de muitas famílias. Casas simples, de tijolos e cimento, misturam-se a barracos modestos, com paredes de tábuas e teto de brasilite.
A fiação é antiga, com ligações clandestinas. O esgoto está presente nas casas de alvenaria, e muitos barracos nem sabem o que é ter água encanada. As necessidades saltam a olhos vistos e, como se não bastasse, uma enorme duna ameaça as casas, as ruas e, principalmente, a saúde e paz dos moradores da Favela do Siri, no norte de Florianópolis.
O frio, característico dos meses de outono e inverno, de nada ajuda; só faz a situação parecer ainda mais penosa. Os ventos “cortam” a pele dos pés descalços e trazem as doenças respiratórias; aqueles mais fortes e devastadores fazem a montanha de areia “andar”, soterrando casas, ruas inteiras; a areia entra pelas frestas, entra nos olhos e nos pulmões.
Aos habituados com as imagens divulgadas pela mídia das favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo, a visão da Vila do Arvoredo, nome que a prefeitura deu para “amenizar” o rótulo de favela, pode não corresponder à expectativa. Na verdade, é difícil considerar o cenário que se apresenta como tão pobre e necessitado quanto aqueles “mares de morro” das capitais do sudeste.
Mas, se apurarmos o olhar, se nos detivermos nos detalhes, se despirmo-nos dos preconceitos, veremos que a dimensão da favela não é, necessariamente, proporcional às suas carências.
As pessoas que lá vivem devem ser vistas e ouvidas com atenção.
A Favela do Siri, como muitas outras, sempre foi ignorada e “deixada de lado” pelos que governam a cidade e as opiniões. Porém, um empreendimento imobiliário, um tanto polêmico devido à sua instalação numa área de preservação, o Costão Golf, trouxe às manchetes essa comunidade do norte da ilha.
O grupo Marcondes, responsável pelo Costão, alega que a favela, ou melhor, a visão da mesma, irá impossibilitar que seus clientes tenham uma “bela vista” do teleférico que “correrá” o céu daquela região interligando os dois empreendimentos do grupo (Costão do Santinho e Costão Golf).
A saga de remover as famílias do local começou. “Ah! Isso é uma novela!”, exclama Glauceli Carvalho Ramos, a Galega, representante dos habitantes da favela, quando perguntada sobre a situação que aflige os moradores da vila e suas casas.
Cinco mil reais por propriedade, ou terreno, é o que a prefeitura tem oferecido às 290 famílias que moram na Siri para se mudarem, para deixarem suas casas - que com muito trabalho conseguiram montar - e voltarem para suas cidades de origem. Segundo Galega, noventa por cento dos moradores da favela não são de Florianópolis e, ainda, a maioria possui um documento que comprova a compra de seus lotes, que não são resultado de uma simples invasão como alegam os políticos.
“Queremos no mínimo cinqüenta mil por família. O que se pode fazer com cinco mil? Não dá para comprar uma casa”. Esta afirmação de Galega exprime toda a indignação das pessoas que moram na Vila do Arvoredo e que não querem deixar seus trabalhos, a escola de seus filhos e, principalmente, o lugar que eles consideram seu lar.
Em meio a esse impasse alguns locais são estudados para o novo endereço da Favela do Siri. O primeiro lote oferecido pela prefeitura localiza-se no Rio Vermelho e o segundo, em Vargem Grande; contudo, as populações que moram nos arredores dos lotes fizeram abaixo-assinados contra a mudança das famílias para perto de suas casas.
Assim, outros locais estão sendo propostos. Uma das possíveis localidades seria em Capivari de baixo, porém os moradores da favela dizem preferir a opção dada pela Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento), um banhado nos Ingleses - que depois de adaptado poderia receber a comunidade. O maior benefício desse local é o de ser perto de onde é a favela atualmente, e desse modo as crianças poderão continuar na escola e os pais não perderão seus empregos.
Do ponto de vista ambiental, trata-se de tirar uma comunidade que sofre com a má localização - grandes dunas e bancos de areia, um local que deveria ser de preservação permanente - e apenas mudá-la para outro local que, de início, também não serviria para a fixação de casas por seu terreno ser “instável”.
Só se transfere o problema de lugar, não se pensa em como melhorar a vida daquela população sem afetar diretamente o ecossistema de um local que, por lei, é preservado. Seria esse o melhor caminho ou apenas o mais fácil? Com certeza, o mais fácil.

Não há flores na Ilha das Flores (abril/2007)

Quem começa a assistir tal documentário já é avisado pela trilha sonora e por dizeres que aparecem na tela que não se trata de um filme de ficção, que Ilha das Flores existe e que é um local “esquecido” por Deus.
Segue-se então a imagem de uma plantação de tomates. Ela é o ponto de partida da nossa jornada que acompanhará a simples trajetória de um tomate, de sua origem até seu destino final.
A linguagem utilizada na produção do documentário adquire um tom quase didático, nela são dados muitos detalhes como, por exemplo, a localização exata de Belém Novo, em Porto Alegre, com a minúcia de latitude e longitude, em segundos.
Cada ser, pessoa, animal ou vegetal tem suas características minuciosamente descrita. Tal como um raio-X, de forma pedagogo-didática como a descrição de um japonês, ressaltando suas características mais latentes e que o diferem ou assemelham aos outros seres humanos.
O narrador atem-se a descrever detalhadamente o ser humano, citando como principais características diferenciadoras dos demais animais possuir polegar opositor e um encéfalo altamente desenvolvido.
As imagens utilizadas ao mesmo tempo em que são descritivas, ou seja, ilustram a fala do narrador, também são colocadas de forma irônica, a fim de se fazer críticas implícitas, sutis. Como à bomba atômica, ao nazismo, ao consumismo, aos lixões e outros.
O lixo só será citado após o sexto minuto de documentário, e é ele que, realmente, irá nos interessar para esta análise, não o lixo em si, mas seu destino, sua “utilização”.
A Ilha das Flores, foco deste documentário, é apresentada ao espectador perto dos sete minutos de exibição: “Há poucas flores na Ilha das Flores”. Essa afirmação já nos mostra o viés que tomará a narrativa a partir de então.
Após oito minutos do filme, vai ficando cada vez mais clara a intenção do documentário, o que ele critica, e de que modo o faz usando as imagens e a narrativa ainda no estilo didático.
“Aquilo que foi considerado impróprio na alimentação dos porcos será utilizado na alimentação de mulheres e crianças”, que são seres humanos com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e nenhum dinheiro nem “dono” (como possuem os porcos).
Nesse momento, é feita uma pausa na narração, de cerca de cinco segundos, na imagem das mulheres e crianças, sem dinheiro, contra um fundo branco. O silêncio, nesse caso, também faz o papel de crítica, chamando a atenção do espectador com a quebra da narrativa.
Mostra-se então como essas pessoas conseguem o que comer: o lixo impróprio para os porcos serve de alimento para famílias inteiras que são tratadas pior que os animais pelos trabalhadores que cuidam dos porcos.
É refeita a retrospectiva do tomate, de forma mais rápida, a fim de dar mais peso e dramaticidade à situação das pessoas da Ilha das Flores, comendo o lixo recusado pelos porcos.
Outro silêncio pára a narrativa e é a partir dos onze minutos de documentário que o narrador irá tentar explicar a situação, colocando de forma implícita a opinião de seus produtores e mostrando ao espectador a barbaridade da vida, se é que pode ser chamada assim, a que são submetidos os habitantes da Ilha das Flores.
A liberdade é citada, no fim, como se fosse um desabafo, uma forma de colocar a todos que esse conceito, como muitos outros, é relativo e sujeito à interpretação subjetiva de cada um.
Será que para aquelas mulheres e crianças a liberdade tem o mesmo valor que para nós? Será que para eles ser livre é garantia de uma boa vida? Será que essa liberdade pode ser relacionada às oportunidades ou à falta delas?
Quem achar que pode responder a tais questões ou as considera tolices, sugiro que assista ao documentário Ilha das Flores. Reserve apenas 13 minutos do seu tão valioso tempo e se proponha a refletir sobre a vida; não dos abastados milionários, mas daqueles habitantes da ilha que, sem opções, sobrevivem dos restos, dos rejeitos dos homens e dos porcos.


Ficha Técnica:

Produção Mônica Schmiedt, Giba Assis Brasil, Nôra Gulart
Fotografia Roberto Henkin, Sérgio Amon
Roteiro Jorge Furtado
Edição Giba Assis Brasil
Direção de Arte Fiapo Barth
Trilha original Geraldo Flach
Narração Paulo José

Resenha do documentário: Ilha das Flores
(www.portacurtas.com.br/ Filme.asp?Cod=647)

Um ácido e divertido retrato da mecânica da sociedade de consumo. Acompanhando a trajetória de um simples tomate, desde a plantação até ser jogado fora, o curta escancara o processo de geração de riqueza e as desigualdades que surgem no meio do caminho.